segunda-feira, junho 21

a vigésima primeira tormenta.

Queria usar esse texto como uma espécie utópica de catarse: eu escreveria, escreveria, escreveria, escreveria e, quando colocasse o último ponto final, tudo ficaria bem de novo. Você estaria aqui, eu estaria perto de você, nossa rotina teria voltado aos eixos. Meu dia seria preenchido inteirinho por você de novo: o seu beijo de bom dia, seu ânimo pra me fazer sair da cama, seu convite pra que eu me apressasse em passear com você e nosso doggo, seu pedido pra que eu fizesse café da manhã; compartilharia risadas, links, raivas e absurdos com você até a hora do almoço; cozinharíamos juntas ou uma de cada vez dependendo da doideira do dia; preencheria a tarde da mesma forma que a manhã foi preenchida; finalizaria a tarde fazendo exercícios com você (nem sempre, mas em dias ideais); e depois, na melhor hora do dia, tomaria banho pra jantar e ficaria de grude contigo até que o sono viesse, você me pedisse concha e fôssemos pra sonhos diferentes. Tivemos outras muitas formas de rotina, outras formas de meus dias serem preenchidos por você, mas essa se tornou a minha favorita: eu te tinha a um braço de distância, literalmente.

E agora que cada uma está não só em sonhos diferentes mas em percursos diferentes me dói o tanto que você está presente na minha vida. Eu acordei baqueada por não ter mensagem sua, eu fiquei triste porque vi o presente de aniversário que você me deu, eu dei um riso sentido quando notei que minha forma de expor meus incômodos tá parecendo muito com a forma como você o faria; me deu nervoso notar que você está em todo programa de computador que eu abro (tem uma pasta pra você aqui, tem uma pasta pra você no meu programa de agenda, tem favoritos sobre você no meu computador). Parte de mim tá se matando pra abrir a galeria e ficar numa reminiscência de nostalgia com vídeos e fotos suas, mas eu sinto que vou me despedaçar inteira se fizer isso agora. Eu sinto que a catarse funcionaria de uma forma diferente e, ao invés de torcer por uma que seja utópica, seria absurdamente distópica com eu me dissolvendo em alguma coisa no mesmo ponto final que falei no começo do texto.

O jeito que você fala e ri, as suas reações que eu sabia prever (e que causava em você reações como "então eu sou previsível?" quase sempre, mesmo você também sabendo prever as minhas e isso sendo mais um reflexo de algo bonito do que de previsibilidade), a sua forma de chegar perto e pedir colo. Só que, de tudo isso, eu estava com saudade faz tempo. Da rotina, de você perto, do seu cheiro, da sua forma confortável de ficar quieta e sem conversar só sentada ao meu lado, do seu jeito de pedir carinho sem que eu tocasse em você de forma que te causasse arrepios. Eu já estava morrendo de saudade disso, sendo corroída, há tempos. Eu estava desesperada. Nada que me fosse oferecido nas atuais condições estava servindo. Nada que eu oferecesse parecia suficiente. Como poderia? Você tem noção do nível de perfeição que a gente tinha atingido antes pra que qualquer outra coisa, qualquer outro cenário que não fosse minimamente comparável pudesse encaixar? Eram parâmetros muito altos. Qualquer outra coisa parecia tentativas doidas, parecia que estávamos querendo ultrapassar um avião correndo o mais rápido que conseguíssemos. Não dava, não tinha como.

Em muitas outras coisas que escrevi pra você eu te disse que você se alojou em mim de uma forma que era gostosa de sentir, que você tinha tomado posse de cada cantinho da minha alma como se essa tivesse sido sua casa desde sempre. E é verdade, você fez isso. Mas agora que você não tá mais aqui eu não tenho nem como expressar o quão vazio as coisas estão. Como tudo ecoa, como tudo doí, como a cada dez minutos que eu consigo não chorar parece uma vitória mas é sempre seguido de outros muitos minutos de choro convulsivo. A minha alma que você fez de casa tá devastada como se tivesse passado por ela terremotos, tsunamis, bombas e todo tipo de desastre de uma vez só. Tá em caco, em pedacinhos, e ao mesmo tempo tá implorando pra ser feita de lar de novo.

[...]

Não vai ter ponto final nem servir de catarse utópica, viu só?

quarta-feira, julho 31

o cilindro branco.

Há alguns anos, talvez oito ou nove, eu tinha sido convidada a ir ao mesmo lugar onde estão hoje. Havia levado um livro que estava lendo pela segunda vez — a primeira vez tinha sido ainda na escola na época do fundamental, emprestado da biblioteca — e ficara horas ao redor da piscina lendo sobre castelos, construtores e disputas. Nesse mesmo dia, durante a manhã, havíamos tido momentos que, hoje, vejo como gostosos: rodeamos o pomar todos juntos, nos apresentaram plantas e frutas que hoje não lembro do nome, nos perdemos no meio daqueles metros quadrados como se fossem quilômetros e mais quilômetros de floresta, prontos para serem conhecidos.


Era a sobrinha e neta mais velha (alcunha que ficou comigo durante toda minha infância e adolescência, sendo, provavelmente, apenas um adendo bobo agora) e que fui a única que permitiram subir naquela construção imensa que havia ao lado da casa. É algo que, ainda hoje, não entendo o porquê da existência: era um cilindro enorme, talvez com quase trinta metros, não largo o suficiente pra ser mais forte que o vento e branco; branco ao ponto de doer o olhar. A única forma de subir até o topo era por meio de uma escada fina, com uma proteção risória, que ficava ao lado, protegida do sol da manhã pela sombra do cilindro naquele momento. Eu estava com medo, não vou negar. Não tinha medo de altura, especificamente, mas me haviam alertado inúmeras vezes que lá em cima o vento era mais forte. Além disso, assim como a escada, a proteção não era das melhores: um escorregão bobo poderia fazer com que a descida sob o sol fosse dez vezes mais rápida que a da proteção da sombra. Mas eu era a mais velha e a única que tinha permissão, até então, de ir até lá juntamente com os adultos — que hoje me ouvem e levam a sério, mas que na época só me achavam inteligente por ler demais e tirar notas boas. Então fui. Primeiramente, acompanhada de outros dois que, juro, não lembro quem eram: podia ser facilmente meus tios da mesma forma que também poderia ser meu pai e meu avô. Mas depois eu fiquei sozinha e acho que, juntamente com o fato de estar lendo um livro da minha infância naquele dia — ainda que seu conteúdo não fosse dos mais infantis, mas nunca falei disso com outra pessoa — , me marcou. Eu via o pomar que havia sido encantador pra mim há uns momentos, via a piscina que seria meu abrigo durante toda a tarde; via meus primos, meu irmão, meus pais, tios, avôs, todos andando cada um com seu distinto objetivo pela chácara; via cavalos e a chácara vizinha um pouco mais a frente. E ventava. Ventava muito. Não mentiram ou adicionaram coisa alguma quando comentaram que lá em cima ventava muito. E minha mãe tirou uma foto minha lá. Estava na beirada, bem no lugar que me faria descer mais rápido se eu inventasse de ser paquerada pelo vento, e abri os braços pra ser colocada em um frame que não sei mais onde está.


Hoje a situação é diferente. A chácara nessas férias abrigou meu irmão, meus primos, tios, mas não a mim — que não fui convidada —, nem aos meus pais — que se divorciaram — ou aos meus avôs — esses porque, provavelmente, só não puderam ir. E não me dói pensar no fato de divórcio ou dos meus avôs estarem ficando velhinhos demais pra acompanhar seus netos nessas férias de chácara que nos eram tão preciosas quando crianças. Mas no fato que não fui convidada. Me lembrei que aos poucos fui me afastando de pessoas que, em certo sentido, me são queridas. Pensam diferente, agem diferentes e tem ideais que não considero os melhores, mas são queridas. Estão inseridas em memórias minhas que gosto de relembrar, em momentos meus que gosto de pensar de novo. Me dói porque agora, com ciência de mais coisa e sabendo de quem sou e do que levo comigo, não me parece que terei novas memórias deles para guardar. Estarão lá, no meu passado, guardados quase tão estáticos quanto eu a foto que minha mãe tirou de mim. E eu poderia tentar expor a real eu a eles, talvez o faça, mas me são conhecidos demais — os pensamentos, as atitudes e os ideais — para pensar na hipótese de ser novamente inserida em seus cotidianos. A única coisa que mudaria na falta de convite é que seria proposital.

sexta-feira, maio 17

a vigésima tormenta.


não me sinto pertencente
ou capaz de estar aqui
e nas raras ocasiões em que pareço presente
a presença é rodeada da sensação de ser a pior opção
(quando há a opção da opção).

poderia sentar
ficar quieta
olhar pro nada
pensar naquele nada que é o misto de cinquenta assuntos
sentimentos
sensações diferentes.

poderia ficar sem falar por dias
e só ouvir o mundo
ecoar
e silenciar
ecoar
e silenciar
por horas a fio.

parte de mim parece ter ficado
no limbo em que estávamos
antes de vir pra cá.

eu não me sinto completa
e não é por falta de alguém
algo
alguma coisa
ou seja o que for que possam culpar.

é por falta de mim.
a falta de algo que está
tão inalcançável,
tão inacessível,
que parece nem existir.

ai sou preenchida por vazio
na mais improvável incoerência

preenchida
por
vazio

uma palavra tão pequena, tão minúscula
que não deveria ter poder de preencher coisa alguma.
porém, veja só,
eu também sou pequena
e também me sinto minúscula.

quarta-feira, março 6

a décima nona tormenta.


eu gosto de escrever.

isso não significa que tenha a capacidade de te tocar com verbos bem encaixados em metáforas feitas pela primeira ou vigésima vez;
tampouco que eu saiba exatamente sobre o sujeito que escrevo, ainda que o sujeito da vez seja eu;
também não me impede de compor uma frase específica que martele na sua cabeça por horas até que você a digira;

significa, simplesmente, que sinto o dever de escrever
na mesma intensidade que sinto.

pois tristeza me parece um dia nublado, chuvoso, com relâmpagos, gritos e barulhos oriundos de sabe-se lá onde;
me afeta na profundeza do ser enquanto meu rosto está congelado em uma plenitude de tempos atrás.

felicidade me faz explodir e conversar sozinha pela rua;
saudade eu sinto até do vestido rosa de quando era menina, imagine quando situações mudam;
devaneios me sobram igual fio de cabelo pelo chão de casa, dos mais filosóficos aos mais absurdos;
incômodos, desconfortos, tranquilidades, aconchegos, paz, desencaixes...
não há datilografia que me acompanhe.

gosto de escrever e não significa que eu tenha dom pra conversar com sua alma
ou te fazer sentido
ou apenas te soar bonita

só gosto.
e por isso faço.

quarta-feira, fevereiro 27

a décima oitava tormenta.



me chacoalha por inteiro desde o primeiro beijo:
quando não o corpo,
a alma.

me atinge no âmago do ser
me respalda na base das inseguranças
me abraça na paz e na tormenta
me cura
me balança
se torna a única certeza em meio a fases e fases e fases.

me complementa
aumenta
acalenta
de forma tão natural quanto lhe é analisar em outros pontos de vista.

se tornou o ser mais bonito do mundo
em todas as vezes que me fez admirar
ter orgulho, estar leve, sentir conforto,
te amar.
amar tanto que parecia impossível experienciar qualquer coisa
sem ter a vontade de dividir com você.

me divide em pedacinhos
torna o complicado fácil;
me compreende por inteira
torna a bagunça clara;

se enraíza em solo que jamais imaginei fértil
e cresce em mim
ocupa em mim
semeia em mim.

e vem assim
me sorrindo boba
derreto.

segunda-feira, fevereiro 25

a décima sétima tormenta.

pieces that i could write.

pensamentos.
devaneios.
divagações.
meias conversas.
algo que passou na tela.
uma frase que preencheu meu silêncio.
conclusões sobre histórias nas quais não estou envolvida.
comentários na parada de ônibus.
a forma como te olharam.
o som de algo que me martela por dentro.
o gosto daquela bebida depois de tempos distante.
verbos que, repentinamente, me paralisaram.
implosão sentida até na mais grossa camada de pele.
o sabor quase palatável do desassossego.
a ternura em ter de volta.
aquela incapacidade de diálogo.
toque.
sorrisos.
o "tá tudo bem" enquanto o corpo grita que não.
leveza ao lidar com algo que pesa.
saudade. saudade. saudade.
⠀⠀de tanta coisa que me geraria dois volumes completos.
a ida. a vinda. o sentimento de estar indo.
completa incongruência acerca do que fazer.
o estado de espírito inquieto em quartas feiras.
a tranquilidade da alma lavada em domingo.
hipóteses inusitadas de cenários inexistentes.

segunda-feira, novembro 26

a décima sexta tormenta.



Haviam me dito que poderíamos nos perder no meio do processo.

Que nos acostumaríamos com nossas presenças em um nível onde pudêssemos estragar tudo o que vivemos pra chegar ao costume. Que não teríamos sobre o que falar em algum ponto. Que ter que dividir a vida se tornaria um peso quando tudo estourasse. Só que eles estavam errados; como costuma acontecer a basicamente toda pré disposição de palavras opinativas.

Acostumei com sua presença, mas não estragou nada: acostumei ao ponto de me sentir confortável em falar sobre pesos meus, a ouvir sobre pesos seus, a entender pesos nossos; acostumei ao ponto de expor os medos, os desejos, os receios e saber que eles seriam, se não compreendidos, ao menos levados em conta; acostumei ao ponto de saber qual será sua próxima fala ou entender que algo te incomoda tanto (ou tão pouco) que você não quer falar sobre naquele momento. Acostumei, mas foi um costume que me levou a conhecer e ser conhecida. Um costume que me dava certeza da falta de monotonia ou da leveza que uma monotonia nos trouxesse.

Sobre não ter o que conversar... Ah, que bobos. As melhores teorias do mundo foram feitas em noites que estávamos no quarto, em dias que cozinhamos o tempo todo, em tardes que víamos horas e horas seguidas de filmes que depois esquecíamos do nome mas lembrávamos da história. E o silêncio que vem entre uma teoria e outra não é desconfortável. Há sempre sua mão em mim esperando a próxima; minha mão nos seus cabelos procurando te dar conforto depois de um falatório longo; seus olhos nos meus, por cinco segundos, depois de um sexto inteiro de volta do relógio sem que nos olhássemos diretamente; meus olhos em seu perfil só pra saber se, mesmo com o silêncio, você ainda está lá.

E peso? Foi a coisa mais boba que eu ouvi na minha vida inteira. Quando nos conhecemos, você me disse que era mais produtivo dividir o peso do mundo com pessoas que você confiava do que carregar ele sozinha. E nós colocamos isso como um pré requisito que ninguém deu certeza sobre o cumprimento; só existe. Não há peso em dividir com você as teorias mais pesadas, a parte mais suja, a loucura mais insana, o problema mais absurdo do mundo. Não há peso em te ouvir e tentar ajudar sobre as coisas mais triviais ou mais cruciais que perpassam ao seu redor. Não há peso, nunca houve. E dificilmente darei razão a eles dizendo que num futuro próximo possa existir.

O que eles esqueceram de comentar quando colocam essas regras absurdas em amores, quando tentam impor uma maldição que te dá prazo pra ser feliz, é que regras são feitas para serem excedidas, quebradas. Eu, você e mais um monte de teimosos não precisamos escutá-los. Apenas existir e provar que estão redonda e profundamente enganados.
© terna tormenta
Maira Gall